CONHECER A DEUS É PRÁTICO
- Lucas Sabatier
- há 1 dia
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Por: Lucas Sabatier
Conselheiros bíblicos são frequentemente elogiados por sua orientação prática. Ouço estudantes de aconselhamento bíblico dizerem: “essa é a hora em que a teoria encontra a prática nota”. E isso é bom!
Contudo, pode ser que, ao se referirem a praticidade do aconselhamento bíblico as pessoas estejam afirmando que aquilo que veio antes não é prático. Em outras palavras, interpretação bíblica e teologia seriam a parte teórica do processo, enquanto o aconselhamento seria como aplicar esse conhecimento. Fazemos essa distinção de boa-fé, com vistas à santa obediência, o que é, obviamente, louvável. No entanto, há um sentido em que essa distinção é enganosa.
Nas Escrituras, nós encontramos a Deus
Relacionamentos não são como as fórmulas matemáticas, que podem ser aplicadas a problemas específicos. Relacionamentos não são teóricos – eles são experimentais. Relacionamentos não têm a ver com conhecer uma teoria, mas com conhecer alguém - não simplesmente conhecer sobre o outro, mas conhecer a pessoa. Há uma relação, e nessa relação, o conhecer sobre a pessoa é uma consequência natural do conhecer a pessoa. A razão para isso é simples: pessoas não são conceitos ou princípios abstratos. Nós somoscontraparte uns dos outros .
Agora, pense nas Escrituras. Conselheiros bíblicos têm afirmado, por muito tempo, que a Bíblia é a revelação especial de Deus. Ela é “especial” porque é mais específica do que a (revelação) natural ou geral. Mas, ela é também especial porque é a revelação direcionada ao povo específico de Deus, o povo da aliança, a igreja, a qual é um produto das Escrituras – uma “criatura da Palavra”, como diria Lutero. Então, as Escrituras são um ato criativo de autocomunicação de um Deus relacional.
As Escrituras não são uma mensagem abstrata de um deus impessoal ou um manual teórico de instruções a ser seguido. As Escrituras são a voz viva doDeus que não falou apenas no passado, mas que continua a falar hoje ao serelacionar com Seus filhos (Hb 4.12). Como afirmou um de meus teólogos favoritos: “Inspiração divina, portanto, é um atributo permanente das Sagradas Escrituras. Elas não foram apenas “sopradas por Deus” no momento em que foram escritas, elas são “Deus soprando1.
Pense nisso: se Deus se relaciona com Seu povo, falando através das Escrituras, então a interpretação bíblica e a teologia são ações práticas. Nas Escrituras, nós conhecemos Deus – não somente sobre Deus – e, insisto, não há nada mais prático do que conhecer alguém.
Portanto, conhecer a Deus através do texto inspirado não se trata de um passoteórico que antecede um passo mais prático. Pelo contrário, o estudo das Escrituras trata da possibilidade encantadora (e chocante) de conhecer a Deus e relacionar-se com Ele. Ao nos envolvermos com o texto bíblico, desfrutamos de um encontro sagrado e abençoado com o Santíssimo.
O Santo Espírito é o Senhor de nossa audição
O texto de Tiago 1.22-25 frequentemente é citado em sessões aconselhamento bíblico para salientar que nós não devemos “ser apenas ouvintes da Palavra, mas também praticantes”. Nessa passagem Tiago compara o “ouvir” com o ato de alguém que contempla sua face no espelho. Nessa figura de linguagem o espelho assume o papel das Escrituras. Não obstante, uma teologia das Escrituras mais abrangente nos lembra que as Escrituras não são um espelho impessoal, mas uma voz viva.
A convicção que encontramos ao ler as Escrituras não é um mero produto de uma autorreflexão ou autoconfrontação. Em vez disso, essa convicção é resultado do trabalho de Deus, o Espírito Santo, que nos dá ouvidos para ouvir a voz divina no texto e abre os nossos olhos para olhar para Cristo em sujeição a Ele (João 16.7-15).
O Espírito nos capacita a reconhecer que a voz nas palavras que lemos nas Escrituras procedem da boca de Deus. Então, as palavras que lemos não são ouvidas apenas pelos ouvidos do intelecto, mas, também, da vontade, que é libertada pelo Espírito para encontrar deleite nos múltiplos tons da voz de Deus. Assim a Palavra não é um padrão teórico morto, mas um discurso divino vivo e ativo levado até as profundezes de nossas almas pelo Espírito Santo – o Senhor de nossa audição.
União com Cristo: onde a confissão encontra a ação
Eu não estou dizendo que não seja possível distinguir doutrina e comportamento. Minha argumentação é a favor de uma conexão mais orgânica entre estes. Eu proponho, portanto, que ortodoxia e ortopraxia se encontram em nossa união mística com Cristo. Ele é a conexão orgânica. O Cristo das Escrituras não está distante dos redimidos, mas está intimamente unido a eles (Jo 17.20-23). Ele é tanto o objeto de nossas confissões quanto o agente de nossos atos de justiça (Cl 1.28; Gl 2.20). Sem Ele, nada podemos fazer (Jo 15.1-11).
O Cristo apresentado nas Escrituras é o mesmo Cristo em quem nós vivemos pelo Espírito Divino. O Cristo das Escrituras é o Cristo em nós. Sua história é nossa história, e assim vivemos de acordo com ela (Rm 6.1-11). Como disse Calvino: enquanto estamos sem Cristo e separados dEle, nada do que ele sofreu e fez para a salvação da raça humana será de benefício para nós2”. Em nossa união com Cristo as boas novas das Escrituras se tornam as nossas boas novas – aqui, hoje, Cristo em nós. Isso destaca como o objeto de nossos esforços teológicos e interpretativos não é estático, mas, o Deus vivo que revela a Si mesmo para estar presente, salvando e transformando pecadores.
Implicações no aconselhamento
Meu desejo de apresentar algumas implicações para o aconselhamento deve destacar que eu não estou resistindo às orientações práticas de nossa área. Pelo contrário, eu quero enfatizar que contemplar Deus nas Escrituras é essencial para uma vida de comunhão com Ele; conhecimento de Deus é, de fato, prático.
Essa ênfase relacional na leitura das Escrituras é importante para o aconselhamento de pelo menos três maneiras.
Primeira, uma ênfase relacional na leitura da Bíblia ajuda a evitar uma abordagem legalista da vida cristã, sem cair na armadilha do ensino da “graça barata”. A visão de Cristo transforma o crente que desfruta da comunhão com Ele, e então os mandamentos bíblicos ganham vida na pessoa de nosso Salvador, que está conosco e em nós (Mt 11.28-30; 28.20).
Segunda, a leitura e meditação das Escrituras se tornam mais do que uma simples tarefa para casa atribuída em um aconselhamento. Ler a Escrituras com o desejo de encontrar e desfrutar de Deus é um fim em si mesmo – um fim prático e frutífero.
Finalmente, enfatizar o aspecto relacional de ler a Bíblia estimula uma maior dependência de Deus em oração para transformação. Por que nossos esforços humanos para ter comunhão com Deus são insuficientes em si mesmos, a mudança deve começar com Deus vindo a nós. E Ele faz isso por meio de Sua Palavra e Seu Espírito.
Questões para reflexão
1. Você tende a ver a interpretação bíblica e a teologia como meramente teóricas?
2. Se sim, quais seriam alguns aspectos de seu aconselhamento que precisariam de ajustes para que os aconselhados possam ver o caráter relacional de Deus nas Escrituras?
Referências:
1. Herman Bavinck, Reformed Dogmatics: Prolegomena, vol. 1, edited by John Bolt, trans. John Vriend, (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2003), pg. 385.
2. Calvino, João, As Institutas da religião Cristã, Vol. III. Cap I. 1
Autor: Lucas Sabatier M. Leite atua como Professor de Ética e Aconselhamento Bíblico no Seminário Bíblico Palavra da Vida em São Paulo, Brasil. Ele está cursando seu doutorado em aconselhamento e teologia sistemática no Southern Baptist Theological Seminary em Louisville, KY. Lucas é casado com Bella e têm três filhos.
Tradutor: Wallace dos Anjos
Revisor e Editor: Alex Mello
Publicado originalmente em:https://www.biblicalcounselingcoalition.org/2021/05/10/knowing-god-is-practical/
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