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Vício e Virtude:A Adicção Sob uma Perspectiva Teológica

Resenha Crítica da obra de Kent Dunnington em apoio à prática do Aconselhamento Bíblico.


Por Dionatan Cardoso


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“Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas convêm. Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma.” (1 Coríntios 6.12).

 

            Esse versículo paulino serve como chave de leitura para o tema da adicção, lembrando que a vida cristã envolve discernimento e domínio próprio diante daquilo que pode escravizar o coração.

 

            A obra de Kent Dunnington, Vício e Virtude: A adicção sob uma perspectiva teológica, surge nesse cenário como um esforço singular de inserir a filosofia e a teologia em um campo que, nos últimos anos, tem sido dominado quase exclusivamente pelas ciências naturais e sociais. Em meio à abundância de estudos clínicos, neurológicos e psicológicos, há uma escassez de reflexão teológica substantiva sobre o fenômeno da adicção. É justamente essa lacuna que o autor busca preencher, oferecendo não apenas uma explicação conceitual, mas também uma visão capaz de iluminar a prática pastoral e o aconselhamento bíblico.

 

            Dunnington argumenta que os modelos dominantes para explicar a adicção — o da doença e o da escolha — são insuficientes. O modelo da doença, ao reduzi-la a um distúrbio cerebral, tende a retirar do adicto a sua responsabilidade moral. O modelo da escolha, por sua vez, a trata como simples decisão voluntária, sem considerar a força compulsiva que caracteriza o comportamento. Para superar essa falsa dicotomia, o autor recorre à tradição filosófica de Aristóteles e Tomás de Aquino, defendendo que a categoria mais adequada para compreender a adicção é a de hábito.

 

            O hábito, entendido como uma disposição adquirida que molda tanto os desejos quanto as ações, explica por que o adicto age repetidamente contra o seu próprio juízo racional. Assim, a adicção não é uma doença involuntária, nem uma escolha plenamente livre, mas um hábito enraizado, difícil de ser mudado, embora não impossível de ser transformado. Essa visão é especialmente útil para o aconselhamento bíblico, pois preserva o caráter moral da adicção sem ignorar sua força escravizadora, permitindo ao conselheiro reconhecer tanto a responsabilidade quanto a necessidade de graça e discipulado no processo de mudança.

 

            A segunda tese central do autor amplia ainda mais o horizonte. Ele sugere que a adicção deve ser compreendida como uma crítica encarnada da cultura moderna. Em outras palavras, a proliferação de vícios não é apenas um problema individual, mas um espelho que revela falhas profundas da sociedade em oferecer meios saudáveis de buscar os bens fundamentais ao florescimento humano. O adicto, nesse sentido, torna-se uma espécie de profeta involuntário: sua condição expõe o vazio da modernidade, marcada pelo tédio, pela solidão e pela busca incessante de satisfações imediatas. O comportamento compulsivo, por mais destrutivo que seja, denuncia uma ausência de transcendência e de estruturas comunitárias que poderiam orientar a vida em direção a bens verdadeiros. Para o aconselhamento bíblico, essa leitura cultural é um chamado a não reduzir a luta contra a adicção a uma questão privada. A igreja precisa se ver também como responsável por oferecer alternativas de vida em comunidade, de sentido e de propósito que se contraponham às falsas promessas de satisfação que alimentam a compulsão.

 

            A terceira tese do livro introduz diretamente a dimensão teológica. Dunnington insiste que a adicção não é idêntica ao pecado, mas tampouco pode ser dissociada dele. Ela deve ser vista como uma forma de adoração falsificada. O ser humano, criado para amar a Deus de todo o coração, pode distorcer essa inclinação fundamental e depositar sua confiança e seu desejo em algo criado, transformando substâncias ou comportamentos em objetos de culto. Nesse sentido, a adicção é idolatria: um desvio da adoração verdadeira, uma tentativa equivocada de preencher com o finito o vazio que só o infinito pode saciar. Essa perspectiva é decisiva para o aconselhamento bíblico, porque fornece não apenas um diagnóstico espiritual, mas também uma direção terapêutica. Se a adicção é idolatria, a recuperação passa necessariamente pela restauração da adoração correta. O conselheiro bíblico, portanto, não se limita a oferecer técnicas de mudança comportamental, mas conduz o aconselhado a reordenar seus afetos diante de Deus, encontrando em Cristo a fonte de liberdade e esperança.

            Essa visão traz implicações práticas importantes. Primeiro, ela liberta o aconselhamento da superficialidade dos modelos que reduzem a adicção a um problema médico ou a um simples defeito de caráter. Em vez disso, permite enxergar o adicto como alguém preso em hábitos que deformam a vida, mas que, pela graça de Deus, podem ser substituídos por novos hábitos virtuosos. O processo de discipulado cristão pode ser descrito justamente como essa formação de hábitos santos: oração, leitura das Escrituras, participação comunitária, confissão de pecados e serviço ao próximo. Cada prática espiritual se torna uma ferramenta concreta na reeducação do desejo e na formação de uma nova “segunda natureza” que substitui a compulsão anterior. Segundo, ao identificar a adicção como idolatria, o aconselhamento bíblico é chamado a lidar não apenas com os sintomas, mas com a raiz espiritual da escravidão. O conselheiro conduz a pessoa a reconhecer em que medida sua adoração tem sido desviada e a redirecioná-la para o único objeto digno, o próprio Deus. Finalmente, ao reconhecer a dimensão cultural da adicção, a igreja é desafiada a ser mais do que um espaço de recuperação individual: precisa ser uma comunidade alternativa, capaz de oferecer relacionamentos, sentido e esperança que desarmem a lógica de isolamento e desespero da modernidade.

 

            A leitura de Vício e Virtude é, portanto, de grande valor para todos aqueles que se dedicam ao ministério de cuidado de almas. Dunnington não fornece um manual de autoajuda nem um guia clínico, mas uma reflexão profunda que ilumina tanto a natureza da adicção quanto o caminho de restauração. Para o conselheiro bíblico, esse extrato deixa claro que o combate ao vício não se limita a interromper um comportamento destrutivo, mas envolve a formação de novos hábitos, a reorientação da adoração e a inserção em uma comunidade de fé. Nesse processo, o evangelho se revela não apenas como mensagem de perdão, mas como poder transformador que liberta da escravidão dos ídolos e forma homens e mulheres capazes de viver em virtude diante de Deus.

 

Autor: Kent Dunnington (PhD em filosofia, Texas A&M) é professor de filosofia na Universidade Biola e ensina disciplinas sobre teologia ética, lógica e filosofia da adicção. É autor também de Humility, pride, and Christian virtue theory.

 

Ficha Técnica:

Editora: Thomas Nelson Brasil

Data da publicação  :  15 julho 2022

Edição: Pilgrim

Idioma  :  Português

Número de páginas  :  272 páginas

ISBN-10  :  6556893269

ISBN-13  :  978-6556893266


Autor do Artigo: Dionatan Cardoso

Associado, professor e membro da Diretoria Administrativa da ABCB, casado com Iara Dourado Cardoso e pai de três filhos Arthur, Abner e Anna. Pastor da Igreja Cristã Evangélica do Jardim da Granja em São José dos Campos. Bacharel em Teologia Livre pelo CETEVAP. Licenciado em Letras pela UNISEB. Mestrado em Ministério pelo SBPV. Bacharel em Teologia pela FATERJ. Pós graduado Latu Sensu e Especialização em Docência do Ensino Superior pela Faculdade de Educação São Luís. Pós graduado Latu Sensu e Especialização em Gestão Educacional e Projetos pela Faculdade Estratego. Pós graduado Latu Sensu e Especialização em Psicopedagogia pela Faculdade Estratego em convênio com o Instituto Carreira. Pós graduado Latu Sensu e Especialização em Semiótica e Análise do Discurso pela Faculdade Metropolitana. Pós graduado em Aconselhamento Bíblico pelo CETEVAP em parceria com Instituto Aleph Escola de Artes.

 

Editor do Blog ABCB: Alex Mello

 
 
 

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